O Papa do Diálogo, a Igreja da Contradição.
- Fabrício Barbosa
- 23 de abr.
- 3 min de leitura
Com a morte do Papa Francisco, ressurge um discurso de reverência que tenta apagar séculos de aliança da Igreja com o poder, silenciamentos históricos e contradições profundas.
By: Fabrício Barbosa Data: 22/04/2025

Com a recente morte do Papa Francisco, o mundo parece entrar num breve transe de reverência e nostalgia. Líderes mundiais prestam homenagens, fiéis se emocionam e, na cobertura midiática, ecoa a ideia de um papado marcado pela simplicidade, pelo diálogo e pela compaixão. De fato, Francisco trouxe ares de renovação — ao menos no discurso — para uma instituição que, ao longo dos séculos, esteve muitas vezes atrelada aos interesses de minorias privilegiadas e do próprio Estado.
Mas esse luto seletivo e essa memória conveniente levantam uma pergunta incômoda: até que ponto podemos continuar ignorando os caminhos sombrios que a Igreja trilhou ao longo da história?
A Igreja Católica, enquanto instituição, não é apenas um corpo espiritual voltado a Fé. É, sobretudo, uma potência política e econômica que atravessou impérios, colonizações, guerras e ditaduras. Sua trajetória é também a da exploração colonial, do silenciamento de saberes e culturas, da imposição de uma moral única e da perpetuação de estruturas de poder excludentes.
Durante a colonização das Américas, por exemplo, a Igreja foi cúmplice — e muitas vezes protagonista — no processo de catequização forçada de povos indígenas, apagando línguas, rituais e cosmologias inteiras trazendo uma dominação disfarçada de "salvação". Na Inquisição, perseguiu, torturou e executou milhares de pessoas, sob o pretexto de manter a “pureza da fé”. Durante o Holocausto, setores da Igreja fizeram vista grossa — ou até colaboraram — com regimes totalitários.
E vale o paralelo: os 11 anos do papado de Francisco representam apenas 0,54% da existência da Igreja Católica. Ou seja, por mais simbólico que tenha sido, seu pontificado cobre uma fração mínima de uma história institucional frequentemente marcada por abusos, alianças com o poder e omissões morais profundas.

No Brasil, a influência da Igreja Católica nunca foi neutra. Da sustentação da monarquia ao apoio velado a ditaduras, passando por articulações silenciosas com a elite econômica, a Igreja frequentemente se alinhou com os detentores do poder, mesmo que isso significasse contradizer os próprios ensinamentos de solidariedade e justiça.
E hoje? Enquanto alguns setores progridem em temas como o combate à pobreza ou o diálogo inter-religioso, outros seguem estagnados ou retrógrados. Basta observar as resistências internas a pautas como o papel das mulheres na Igreja, os direitos LGBTQIA+ ou a laicidade do Estado.
A hipocrisia institucional ainda é regra em muitos níveis. Prega-se a humildade, mas mantém-se o luxo. Fala-se de justiça, mas protege-se abusadores. Invoca-se o amor, mas condena-se quem ama diferente.
A morte de um Papa — mesmo que ele tenha trazido avanços simbólicos importantes para a igreja — não pode servir como véu para encobrir séculos de abusos, opressões e manipulações. É hora de reconhecer o que há de luz, sim, mas também de encarar a sombra. Só assim se constrói uma fé que liberta, e não uma que serve ao poder.
📚 Leituras complementares e fontes históricas:
O Poder do Púlpito: A Igreja Católica e a Política no Brasil – Frei Betto
A Igreja e a Ditadura: O Papel da Igreja Católica na Política Brasileira – Paulo Moreira Leite
As Cruzadas Vistas pelos Árabes – Amin Maalouf
O Século dos Mártires: A História da Inquisição – Henry Kamen
Documentário: Silence in the House of God (Mea Maxima Culpa) – HBO
Artigo: “A hipocrisia da Igreja frente aos abusos sexuais” – El País (edição brasileira)
Dado citado: Cálculo estimado da porcentagem de tempo do papado de Francisco (11 anos) em relação aos ~2000 anos da Igreja Católica (11/2025 ≈ 0,54%)
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